Há momentos na vida em que o desejo de sentir-se seguro é equacionado pelo medo. É o medo que nos constrange a usar certas roupas ou símbolos com receio do assédio, da violência, da possibilidade de sermos transformados em vítima. É essa sensação de medo como projeto de segurança que nos fez atribuir a cores, elementos e a lugares uma certa aura ou atitude de rejeição ou evitação. Como democratas, nesse caminho nem sempre muito refletido ou deliberado evitamos o vermelho para não sermos vistos como alvo de alguma ação violenta, anticomunista; pelo mesmo dispositivo também passamos a ler aqueles com a bandeira nacional ou camisas de futebol com suspeição.
Isso tudo me lembra as coisas que li na minha formação como leitor de ficção e como antropólogo sobre medo, violência e colonialismo. Lembro dos comentários do Franz Fanon, da Teresa Caldeira, do Michel Taussig, do Paulo Freire, do Mia Couto, da Noémia de Sousa e do José Craveirinha, a poesia do Ferreira Gullar, os contos do Osman Lins entre tantos outros que me inspiram como pessoa que teme, mas que antes de tudo, sonha.
Retomo aqui uns versos rápidos:
Quem pôs o mistério e a dor
em cada palavra tua?
E a humilde resignação
na tua triste canção?
E o poço da melancolia
no fundo do teu olhar?
Foi a vida? o desespero? o medo?
Diz-me aqui, em segredo,
irmão negro.
Porque a tua canção é sofrimento
e a tua voz, sentimento
e magia.
(...)
que a tua triste canção dorida
não é só tua, irmão de voz de veludo
e olhos de luar…
Veio, de manso murmurar
que a tua canção é minha.
(Canção Fraterna, Noémia de Sousa)
Escurecem as horas
nomeadas pela fome
extinguiu-se o sangue da terra
esvaiu-se o leite
num coágulo de saudade
Restam troncos
sustendo gemidos
mães oblíquas sonhando migalhas
mendigando crenças
para salvar os filhos já quase terrestres
(Protesto contra a lentidão das fontes, Mia Couto)
claro claro
mais que claro
raro
o relâmpago clareia os continentes do passado
(Ferreira Gullar, poema sujo)
Há algum tempo eu também dizia entre amigos que para alguns (aqueles que chamamos de "adversários") nosso medo seria nossa fraqueza, e que deveríamos reverter isso e cotejar que os nossos medos são a unidade de reconhecimento sobre quão muitas e muitos somos , e que estamos juntas. Mas reversão não é inversão, e isso não pode ser uma recusa de que o medo é também um instrumento de colonização das nossa imaginação, uma barragem que tenta conter o poder do sonho e da transformação.
Que a nossa busca por segurança seja pautada pelo cuidado, pela construção de um ambiente afetivo de convívio e amor entre aqueles e aquelas que nos fazem e nos querem bem, não pelo enfrentamento da ameaça da presença de um outro.
Se nosso projeto de democracia é um projeto de substituição das tecnologias do medo pela sofisticação do amor, do respeito e da paz então é preciso criar também novas formas de ocupar o medo e transformá-lo de fato no nosso idioma para a força. Nossa força é a diferença, a possibilidade de diálogo e divergência na construção de mundos possíveis, na alimentação do desejo e da potência de transformação. E nesse momento o caminho para isso, para um mundo do possível, é a democracia, é a eleição daqueles que representam um projeto pautado pelo engrandescimento humano e pela sensibilização.