quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Confissão

Eu tenho sofrido muito
Nos meus voos ensaiados
Que ao querer sair do chão
Ficam-me os pés agarrados,
(Amária Rodrigues)

Há muito não escrevo e por isso sinto-me como alguém que perde suas chaves e por isso não pode entrar em casa. Acontece que a casa agora sou eu mesmo. Não me cessaram as histórias ou a vontade, esse desejo de confissão e cuidado. Faltam ponteiros, relógios e ampulhetas, qualquer sensação de geografia, de solo comunitário que me concedesse junto às palavras os recursos de descobrir, desnudar versos, parágrafos, enfim, de localizar o verbo. Quiçá esse misto de tessitura e lida a que se chama escrita seja mais que o desenho de palavras sobre as superfícies brancas e confusas de linhas que flutuam, que se multiplicam e se fazem ausentes. Que seja isso contar: desenhar de sentimento e degredo, de nudez e segredo. Escrevo não por vaidade, mas por fetiche como alguém que ao ver um corpo assim, caminhando, pudesse desmontá-lo e parte a parte fazer-se confessor para todas as narrativas: um gimnógrafo. Pudesse eu ler toda uma vida assim desenhada entre o esvoaçar do cabelo perdido entre os horários de almoço e trabalho, entre a família e pudor desnudo, te leria inteira noite adentro, noite em mim. Tomo agora as chaves perdidas e, levianamente as escondo em teu corpo fecundo na esperança de encontrá-las na confusão perpétua do teu corpo junto ao meu. Na confissão de também perder-me.
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