sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Saudades

Sim, eu me perdi na chuva
não foi bobagem, não foi engano
foi saudade


***

Isto que escrevo com todos os carinhos
e que rejeitas, deixas de lado com desdém
não são palavras apenas.
São beijos, são saudades.


***

Diz-se assim dessas chuvas,
com muitos erres e tudo mais
Essas que consomem todos os alfabetos
e molham até a lama, até o útero da terra
Não é chuva, amor, é saudade.

***

Vou na chuva
e não me olhes
tudo isso que me envolve
água, vento, névoa
folha lama ou treva
se preciso for
me envolve
não é só a chuva
que lenta e fria cai
é esse teu riso
flor do Índico
É esse teu frio
me envolve
não me olhes

Marujo

nada se vê no além mar
não vem nada do além fronte
mas os ventos que pairam sobre nossa face
                                               
                                                como fala
                                                  e se fala
                                       cala como água

iluminam
sangram
contemplam
 
a nossa estada
essa marcha do mar 
à terra e volta o mar

no além tempo
no além mar
no além fora

É o fronte, é o mar
ladeados e separados
entre aqui e lá

Sei que és tu que sobes a colina
mas é meu velho corpo que atento
cruzo o oceano para te buscar

               e cá estamos
vivos apesar do tempo
  vivos apesar da hora.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Canção da bailarina do Mundo II

A minha bailarina
esconde o mundo
nas cordas de seu bastão

ela docemente valsa
entre animais e casas
entre tragédias e clamores
sem qualquer sutento de asa
ela sutilmente baila  sobre a catedral de Gaudi
 símbolo de sua via
marcada, vivida
restituída
em cores
como um bolero

Louvação para a morte - ou do seu doce veneno

 Dos dias que acordo quase morto
e sinto tua foice gélida
a benzer  meu sono
a roer minhas pernas
a delizar em meu rosto
e desfazer-se em éter
me deixando em mármore
quase gelo quase pedra
reconheço teu argumento
para um renascimento
ou uma morte fatal
se necessário for

mas me responde

tu, que não sei se macho
não sei  fêmea 
não sei se animal 
ou homem raça
espécie
me responde
o porquê deste encontro
o porquê deste lamento.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Canção da bailarina do Mundo

A tua espada
é meu domínio sobre o mundo
e teu valsar
é meu domínio sobre as coisas
e rodopiando
perdido e cansado
me reconstruo e refaço
ao som do teu bailado

A Temperança

O meu anjo
tempera e sustenta
o céu que desaba
das mãos aos os pés
despeja água lubrificada
véu translúcido
revelando o mapa da jornada

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

II

Acordo. Abdico todo o nexo com a realidade na justa promessa da continuidade de sonhos. E pesadelo que sou envolto no ritmo intenso de perde-me e achar-me construindo labirintos divinamente detalhados pelo acaso nesse chão que piso ao devir intraçavel há todo o meu achado. Canto se há música danço se há som, mirando o céu pesado e chumbo,  promissório de eventos planto aqui e lá meus pequenos medos pensamentos achados neste pisado tão negro, tão neste solo tão fraco; mas como dizer teu nome sob este sol tão madrepérola ladeado ruas a que se chama saudade, a que se chama saudade.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

rouge

ma vie es rouge
que la douleur
coagulé

Our chanson d'amour


Chante por moi
toutes vous chansons
d'amour

chante mes yeux
mon âme chante
chante à ma maison
perdue

Sing me all
your love songs

sing me
your soul

write my eyes
on your hands

sussura nossa canção de amor

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Jornada

Centrado
ergues ao céu
vara espada cálice prata
lemniscata
paz equivocada
no ofício de lapidar
em pedra lavada
o duelo constante
dessas forças acusadas

Inconstante

perto do coração
selvagem
labirinto
inscrito ao acaso
leviano e esparso
se perde inequívoco
se encontra inexato
tão inconstante
quanto qualquer
significado

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A Volta do Imperador


Arcano perdido
no ir e vir te tuas pernas
me escondo, quatro que sou
atrás de teu escudo

e frágil como somos
me disfarço com tua ordem
me organizo dentro do cosmos
e me desfaço ao leve
balanço de teu cetro
sempre rutilante

É isso que somos, caro Imperador:
Imagens e pequenos lapsos
de ordem que se refaz
escondida sobre o trono
que já não existe mais.

sábado, 2 de outubro de 2010

Encontro à luz sem velas

Loja de ferragens, setor de luzes e lâmpadas, foi lá que eles se viram pela primeira vez. Procuravam pela mesma coisa: uma lâmpada que pudesse lhes iluminar o quarto. Quando se viram, aproveitaram a luz pra achar a mão um do outro, quando se tocaram. Então ele disse:
- Não quero mais cobertores; quero um abraçador.
E foi no escuro mais que escuro que reinava embaixo dos lençóis que eles se descobriram de uma forma que nem o claro dos dias de dezembro poderia mostrar.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Nós

Foi então que repetiu:
- decifra-me ou devoro-te; e como quem descobre a matemática dos nós, amarrou-se à porta do precipício e perdeu-se nas entrecorda de si mesmo: in labirinto

Midas

É o toque de Midas que tu evocas
escondido sob o véu de Maya
e mencionas poder mudar tudo
exceto por tua seca imagem

Mas não é assim que se faz, Júlio;
não se detém a força à estancagem
é mais fluído tudo isso
que nossa própria vontade

Mas é tudo essa força
esse grito e esse silêncio
que diz calado e canta 
mesmo sem vento

fragmento

E então me despeço
me desfaço

pedaço a pedaço
me refaço

nesse pouco tempo
nesse curto espaço

calmo

o tempo ruge como um rouxinol
mas eu espero
só cabe a mim
escrever estas flores com traços de giz

sábado, 4 de setembro de 2010

Acidente

Ela já não era tão bela quanto se conheceram; provavelmente sete anos se passaram desde a primeira vez que se viram, e o tempo não perdoou a nenhum dos dois. Mas era uma data especial e então ele resolveu convidá-la. 

Já era separado e ele nunca casara, eram ambos desempedidos agora e não iriam necessitar mais de esconder um olhar desejoso sobre a comida ou sobre uma distração qualquer. Ele já tinha quarenta e sete anos, o tempo junto com a saúde levara também alguns cabelos que visivelmente faziam falta, mesmo assim era um homem charmoso à sua maneira; alimentavam os mesmos hábitos, e por diferentes que fossem estes hábitos eram de rotina tão semelhante que mal se percebiam. Eram rituais. Ela escovava o cabelo todas as quartas e sábados a fim de conserva-lhes o liso impecável, já ele revisava a dispensa e as ferramentas todos os domingos, no sábado a noite bebia duas cervejas pretas e jogava os jornais da semana no lixo.

Mas a especifidade da data fizera com que um ritual pouco repetido se fizesse necessário. Precisavam preparar-se um para o outro. A entrega seria inevitável. Então ela vestiu-se bonita como imaginava. Pôs o colar que havia ganho do seu pai na formatura há vinte e cinco anos e que era pontuado por uma pequena esmeralda como que caindo do rosto de uma fada. O cetim claro  da blusa confundia-se com a brancura da pele e o dourado dos cabelos. Ele já se perfumara e por longos minutos refletiu sobre a camisa mais adequada até optar pela azul claro. Mas era então chegada a hora. 

Então seguindo rumo às quatro ruas que os separavam,conduziu o carro até a casa dela. Estacionou, observou a hora e viu que estava acertado. Poucos casais na frente das casas vizinhas recebiam e covnersavam suas visitas. Bateu a porta negra, então ela respirou grave e abriu-a junto com o sorriso. Ele a viu e desejou-a. Abriu a porta do carro, enquanto conversavam sobre a noite agradável que era aquela noite de seis de maio de mil novecentos e sessenta e nove até que perceberam que nada fazia sentido e era o fim.

Foges

Sei exato que sismas
em fugir de mim

Foges

Mas não larga o braço quente
Que nas noites de novembro
Te aquece enquanto imploras
Aconchego e regresso.

Katembe

antes de suor gelado
agora às ruas o rubro quente
estendido o corpo humano
cativo de tudo agora ao tempo

a primavera se aproxima
mas as flores são colhidas
para fins mais sofridos
àquela natura colorida

a terra exposta abrigará
o colorido que já não há
porque as flores são adornos
para aqueles corpos mornos

e o gélido suor do dia
rompe como choro marítmo
de homens e mulheres
sem pais, filhos ou vizinho

Só em Maputo os homens
entendem porque o Sol
acorda vermelho

O beijo

Agora que as ondas do mar calam os segredos  passados
E a brisa sempre fria não nos cobre mais o ventre
Deita teu cerne calmo e sereno em meu peito
Laça teu braço ao meu pescoço ávido
Oceano derramado o corpo estático
Fecha teu olho ao fechar o meu
Elevo meu rosto baixas o teu
abro meu corpo cansado
e dispo meu mundo
frente ao teu
cálido

terça-feira, 31 de agosto de 2010

integrar

Amontoam-se em garés
de procissão levam a cós
problemas
esquecem a rouquidão
a música triste que
cantam enquanto
se lhes perfura o coração

Já nada sei das alegrias do homens
mas ouço a canção de oiro triste
reproduzida no coração também triste
daqueles homens que não choram

das manhãs

acordo
metade de mim
se perde e perde
traduz-se
fragmentado
anômalo e inexato

instável e fluído
meu corpo
segue seu curso
seu curso

Canto de Primavera

o orvalho não corre
as flores não morrem
eles transcorrem
além de todo lugar

seguem seu curso
sumo desnudo
rente e perene
todas sementes

a primavera não chegou
e flores já brotam
porque a vida teima
em sobreviver

domingo, 15 de agosto de 2010

corpo

Para V. F.  

Meu corpo:
princípio estático
rente a tua placidez
larga e erma
perde-se frio

E eu que tampouco
principio ou acabo
corro destino afluente
imenso e lento
para me perder
e achar em ti

domingo, 25 de julho de 2010

poema anti-azul

Esse azul mais que tingente
manchado  de laranja
laranjas de cor pungente
gritando teu riso

Vejo erguer ao ápice
teu seio já duro, rijo
E tua mão escorre
às cavas de meu rosto

Então levas de mim todo afago
sussuras no ouvido coisas poucas
esconde todo riso, me deixa louco
e vai-te embora levando as roupas

Mas esse azul pleno de céu
não há de cantar impunemente.

Questão

Por que é que a gente acredita que ainda pode mudar o mundo
ou fazer alguma coisa simplesmente escrevendo?
Quem  mundo será salvo?
O de fora ou de dentro ?

domingo, 11 de julho de 2010

Oceano

Destes por símbolo o tirso e o mar revolto
a repartir-se em diamantes
a fragmentar-se em mar e cores
e justo assim, não te mato,
não consigo matar-te
na nascente que sou

e por isto, como maré
corres afluente em meu corpo
domína-me, fico a teu controle
e por isso despejas este véu
de brancura vívida
na foz do que sou
e por isso tens e contornas a mim: oceano

sobre a mesa

sobre a mesa
deixo a chave
sobre a clave
do meu peito
descoberto
tudo é receio
tudo é regresso
no deseje pouco
de esquecer tudo
reparto em mim
meios e afins
para refazer
de cada instante
pensamento
inconstante e vasto
que a tudo perde
e que tudo causa
repartido e solo
como água ao chão
perde sua natureza
são divindade de mar
e vai, rumo ao céu
rumo à volta
de volta ao mar

sábado, 19 de junho de 2010

gravado

Às poucas preposições que me foram dadas
juntei a oco todos os poros

em filetes litúrgicos consagrados
de sangue e pó

de memórias poucas as mãos suturadas
reconstruídas foram por secas estradas.

Ilusões fadadas a serem a marca e caminhada
levadas que eram para além de toda jornada dada

e juntas, verborrágicas da mélida cava
ao mar levou consigo a última glória irada.

A um tufão maligo, misto de mito e degredo
furor cavado em nascente de puro corpo e medo

perdeu o fluxo, secou o vermelho interno
e em último espirro deteu-se ao verso.

sábado, 12 de junho de 2010

da palavra dita

Dizer é perigoso, talvez mais perigoso do que ser. Nunca se sabe quando uma palavra dita poderá tomar o controle da vida e transformar-se numa concreta realidade.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

aos que dizem que não vivo

Levantou tão  súbito enquanto arguiam e comentavam sobre os projetos selecionados para a pauta do dia. que ao fazê-lo foi pisoteado por olhares de estranhamento e recusa por parte de seus colegas. Seus olhos foscos e as mãos ardidas denunciavam além do vapor que lhe sobressaía: problemas, e muitos!

Ergueu-se tão alto ao levantar da cadeira e afastá-la para que seus oitenta e seis quilos pudessem sair dali que sua alma não aguentou e  foi-se além dos  um metro e oitenta e seis que possuía de geografia. Era um possível fim no meio do expediente,coisa que todo funcionário saberá bem dizer, é um absurdo. À entrada do conjunto de escritórios que ocupavam aqueles três andares já se havia há muito escrito que só se permitiria assassinatos e suicídios após o horário de expediente, e que caso essa regra fosse violada seria cortado o ponto do dia e seu valor correspondente no salário ao fim do mês. Não havia dúvida da gravidade de fugir das oito horas que era sua obrigação para matar-se ou a quem fosse. Um disparate pelo qual o chefe certamente o mataria se soubesse.  Sendo assim recou-se a viver em sociedade de negócios, projetos e reuniões, ao menos àquela reunião. O restante seria determinado por sua coragem e senso de sobrevivência, caso ele os encontrasse perdido nalguma das pastam com milhares de papéis que ele lia todo dia, mecanica e profissionalmente. Ao sinismo de dizer que não havia nada pra fazer, puxou para si as folhas de contratos e puxou a caneta do bolso:

Aos que já disseram que não tenho alma, que não tenho vida ou sentimentos, ao que já disseram, pensaram e comentaram da minha arrogância firme, da minha sutileza em ignorar se chove ou se há sol; a todos aqueles que um dia juraram pensar quem eu era pela imagem que construíram de mim em oito horas diárias, e quarenta semanais eu vos digo  que não me importo. Não me importo se esqueceram as chaves ou se o vizinho reclama das brigas (que na verdade são os vossos maiores gestos de honestidade porque é aqui que se mostram verdadeiramente violentos), não me importo se me sorriem quando faço um comentário inteligente ou se finger novamente não ter ouvindo quando falo uma asneira em favor da minha reputação, não, não me importo. Isso tudo não me diz absolutamente nada. Verdade é que a maioria de vocês jamais será capaz de justificar nada que disse, foi ou pensou porque a maioria não existe; saber-se-á até que alguns a quem simpatizo sejam pura criações minhas. A todos vós o meu desprezo. E é porque desprezo a todos e me reconheço como não metade, mas coisa inteira e sei que não nasci pra ser dividido, sei que sou o sacrifício, eu bem lhes afirmo que sua companhia não me interessa.  Adeus.

Esta feita, afixou bem a folha ainda branca com poucas manchas de tinta e os sentimentos que pelos outros ele não tinha. Sobre a parede também se viam os horários para cada funcionário ir almoçar e regressar. E foi-se embora, indo em direção à  floricultura. Nunca mais voltou  àquela repartição.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Poética

Havia uma pedra no caminho
e eu fiz da pedra o meu caminho

quarta-feira, 2 de junho de 2010

A noite fria das baleias

para S.

Sei dos dias claros, do sol plácido nos idos de maio
Dos rios e da água gelados à beira de junho
Das cores mornas da madrugada fria
Dos vermelhos graves das rosa na estante
Mas nada disso fala mais a tudo que sou
Nada disso significa mais a tudo que construo
Que o brilho doce e o cheiro cândido
Da tua companheira pele avelã
Na matiz própria de cada manhã
Que renasço a teu lado


Sei que me dizes ao envolver os teus pés aos meus já frios
E ao estender tua mão eu meu rosto grave
E tudo isso não me completa, me justifica
Sozinho sou completo, mas contigo sou inteiro.
Despido da própria natureza do corpo
Da fala que esconde e revela
Ou do discurso que envolve e penetra
Eu me refaço, reinvento
Em ti me ponho e alimento
O meu verdadeiro ser poeta

A Vida que não quis¹

À estrada outonal o caminho divergira
E estando lá a um único seguiria.
Detive a mim, calado, imóvel observava.
A um declive o cursor curvara
E na bruma fria a si ocultara

Viável, também longo que era,
Segui firme ao que restara
E verdes, mofos e marrons marcara
Como riquezas mais àquela estrada
Mesmo somando nada à vista acostumada

À brisa fria a manhã rasgava
Levando ao chão folhas de cor amarga
Talvez ao primeiro também, a foice cava
E sendo cada um outros tantos mais
Certeza tive de não ser eu ou ele o mesmo jamais

Retive o canto ao suspiro parco
Ao tempo exato e à jornada necessária
Ao que imóvel na estrada segregada
Rumei além daquela menos recrutada.
Fiz-me diferente pela escolha escarpada.

______________
¹ Tradução/versão do poema "The Roads Not Taken", de Robert Frost (poeta norte-americano). Texto Original aqui.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

17 de Maio - Dia Internacional de Combate à Homofobia

Há 20 anos a Organização Mundial de Saúde institui o Dia Mundial de Combate à Homofobia como forma de celebrar a retirada do' homossexualismo' da listagem internacional de doenças e transtornos de saúde. Honestamente não sou um estudioso das questões internacionais ou locais que sejam das relacões de gênero e diversidade no meio social, mas eu acredito que como pessoa eu possa ter algo a dizer, algo com que possa contribuir nesse dia de reflexões, e digo reflexões porque não concordaria de forma algum com o termo 'dia de celebrar', porque celebrar implica em festejar, comemorar, estar alegre por algo, e no contexto da data eu não me sinto assim, pelo contrário, me sinto resguardado.

Brincando com um amigo eu lhe disse que hoje era o terceiro dia do ano em que ele poderia sair na rua de minissaia e não ser agredido, afinal é um dia de celebrar a diversidade;  mas agora eu me pego pensando e vejo que não é nada disso. E não basta muita coisa pra chegar a essa conclusão, basta observar jornais e noticiários, comentários dos colegas de aula, de trabalho... ou indo a níveis mais subjetivos, um olhar atento, sair de si um pouco e, em suspenso, observar os olhares dos outros quando vêem dois homens ou duas mulheres muito próximos ou de mãos dadas, num abraço, um um beijo de despedida, mesmo que essas pessoas não tenham entre si uma relação de homoafetividade. A sociedade, querendo ou não, cria para si uma necessidade doentia de fazer juízo de valores sobre coisas que não lhe cabem de forma alguma. E o que é a sociedade que não a soma dos meus desejos, sonhos, vontades, preconceitos, dores e mágoas com esses mesmos preceitos, saberes e sentimentos de outras centenas, milhares, milhões e bilhões de pessoas.

Por muito tempo nutri um ingênuo pensamento de 'possibilidade', e de certa forma preciso admitir que ainda é vivo nos meus pensamentos mais íntimos e opiniões mais singelas sobre qualquer coisa que seja, mas por ter tantas e tantas vezes entrado e saído de mim tantas e tantas vezes eu tenha me dado essa mesma possibilidade com o objetivo de observar. É provável que isso me tenha tornado estéril, seco, áspero, como algumas pessoas próximas comentam, mas enfim... sou eu de qualquer forma. E o que isso tem a ver com o mundo ? Nada e tudo. Tem me incomodo bastante essa forma com que aprendemos a amar alguém pelo que ele 'pode vir a ser' e não pelo que ela realmetne é que se vê nitidamente em comentários do tipo 'eu te amo, MAS você precisa ser assim, assim e mudar isso e aquilo'. Ótimo, vamos crescer juntos porque é isso que o amor tem a ensinar, mas... amar porque precisa consertar alguém talvez seja a prova mais nítida de desamor, e é isso que a sociedade nos impõe: - Eu te amo e te recebo se você mudar isso e isso e aquilo ali também. E nós estupidamente aceitamos porque somos animais sociais e políticos e não sabemos viver sem outros animais também assim caracterizados. Ótimo mundo pra se viver! Pena que não hajam outras escolhas no momento.

Um sensacionalismo se esconde em qualquer coisa que seja noticiável, um desejo de queda, uma vontade de empurar... são todas emoções humanas. Hoje na aula me pronunciei com um singelo comentário a respeito da diferença entre a 'maldade' em crianças e adultos dizendo: Crianças e adultos são más da mesma forma, porém as crianças não precisam esconder o quanto ficam felizes quando alguém se deu mal. Adultos, mesmo quando não precisam o fazem.' E é isso mesmo, em sua maldade honesta as crianças se purificam e transforma aquilo em ajuda, acolhida, aceitação. Nunca vi uma criança rejeitando o convívio com outra por qualquer questão que não tenha sido ensinada por seus pais; e mais feliz ainda fiquei nesses meus vinte e poucos anos quando em sala de aula vi crianças acolhendo e aceitando outras justamente por suas diferenças. Ora! Aprender a conviver é uma questão de educação. Educar para a honestidade, porque é no honesto que reside o real e o diverso. É uma questão de adequar a visão e o tato para tudo aquilo que é a mais divina forma de experimentar o possível.

Pode parecer chavão, e mais ainda se considerado que quem o diz é alguém no meio desses conflitos todos, mas o que nos torna igual é o fato de sermos todos diferentes, mas não é isso que nos une. Eu honestamente queria ser mais positivo e dizer que os meus maiores sonhos como o de ser pai, casar com alguém que eu ame, por exemplo, um dia serão possíveis sem qualquer cinismo que os envolva. Quero um dia não precisar invejar as pessoas em suas ações habituais, ainda mais dizendo 'tomara que um dia eu possa fazer isso como as pessoas/casais normais fazem', porque é isso que me acaba, me entristece e alimenta meu pessimismo. Quero um dia poder sair na rua sem ter o receio de ser apedrejado por um preconceito socialmente justificado e aceito de qualquer idiota que seja. E dou minha palavra de que tudo o possível eu farei para que assim seja, mas honestamente, tenho certeza que este século em que eu morrerei não será o melhor para pessoas que compartilham de idéias semelhantes às minhas, não só no que diz respeito à diversidade dos gêneros sociais, mas em muitas coisas; porém me anima a idéia que, da mesma forma que o século anterior foi pior do que este, o próximo há de ser melhor. E espero que a tendência seja sempre a de melhorar.

Talvez o real sentido desta data não seja comemorar, até porque o trabalho não acabo (acredito até que ele nunca acabará), mas sim parar e refletir que ainda há muito trabalho para se fazer.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

a estranha

Foi difícil vê-la, e talvez não a visse por outro caso, não fosse a senhora que se julgara fraca demais para ficar em pé no ônibus e me importunara com pedidos pra que eu me levantasse e desse-lhe o lugar. Fiz e isso e ela me pediu sinicamente para levar minhas coisas, pedido o qual recusei com muito orgulho. Era forte, eu era forte. Mas é verdade que foi unicamente por isso que pude percebê-la, perdida entre o meio e o começo do fim. Não tinha qualquer cor que fosse visívil à retina dos olhos, porém chorava, ou demonstrava. E não era choro de fome ou de tristeza como vemos quando estamos assim ou dessa forma, eram lágrimas de dor. Lágrimas daquela fonte que se prendem muito firmemente às glândulas do olhos e só saem porque é isso ou é morte, mas isso também é morte. Não se via qualquer resquício de líquido, apenas o inchado e o vermelho de seus olhos e o movimento das mãos a tampar essas hemorragias invisíveis. Então reparei que era possivelmente eu o único em mais de seis bilhões de humanóides ,menos ela, que tivera notado seu estado e mais ainda a sua dor. E foi ao momento da descida, no passo estreiro e frágil, ao esbarrar em mim que senti a queda daquelas dores em meu braço já descrente de qualquer coisa, e foi ali que eu percebi que por maior que fosse meu esforço por entendê-la e mais ainda por enxergá-la, tudo aquilo não valeria nada. Então ela desceu e eu esqueci. Seguimos anônimos por entre pontos, postos e paradas.

Vermelhos

Foi então naquela hora que ela me perguntou o que eu estava dizendo sem perceber no entanto que não nos dizíamos nada há bastante tempo. Era ali que nos líamos sem pronunciar qualquer coisa que se descrevesse como pensamento recíproco ou balbucio. Fechei os olhos e ela abriu as mãos: a sincronia desaparecera, como se relata nesse manuais que não servem a nada simbólico. Certamente ela fosse real; tinha os olhos de uma cor que era muito parecida com seu modo de ser, um verde musgo, verdemuco que se esgueirava e ao chegar a uma sombra confortável por ali ficava, impunemente. Então foi naquele instante que eu por descuido pronuncie a sentença:
- Você me disse que se me visse poderia... poderia qualquer coisa.
Talvez pudessemos nós qualquer coisa, mas era arriscado ou tarde demais para denunciar, pois o começo do fim já houvera se feito presente, graças ao meu descuido. Ou não?
Ela não ouviu. Seus olhos abriram e fecharam levemente, com a faca empunho e os legumes sobre a mesa análoga à pia, cortava cenouras e as banhava em bacias preenchidas de líquido indigente. Levou o antebraço à testa escondendo um cabelo ou um suor fugitivo e disse:
 - Como ? Não ouvi.
Era uma chance pra que eu vencesse o destino. Tentei.
 - Nada não, apenas uma notícia que li aqui no jornal.
- Tudo bem.
 - Que temos para o almoço ?
- Pensei em risoto e legumes.
- Ótimo. Vou trabalhar, até a noite.
E fugi como quem não reconhece a legitimidade da morte próxima e escondi-me em falsas escolhas que sustentavam minha vida prestes a desmoronar.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Um olhar de despedida

Lembrava de muita coisa, inclusive de um convite negado de viagem à Bruxelas. Então vestiu-se de homem de bem e foi vê-lo duas casas após a sua. Fez ressoar sua mão imposta à porta, apressado, até que ele ressurgisse da clareza branca da sala interna. Olhou cândido para a estranheza de quem abre a porta sem entender o motivo das visitas e esperou as palavras, o que não foi muito, quando o outro disse:
- Já que não gostas de Bruxelas, que tal irmos à Lua ?
- Impossível. Não podemos voar, como chegaríamos lá ?
Ele ficou calado, não esperava uma placa de negação a sua frente; no máximo uma risada e um abraço de saudade, o que não houve. Então, olhou para os pés, todo recolhido e perguntou sobre o almoço e a saúde. Respostas afirmativas dadas viu no silêncio um eco e regressou a passos pesados e dolorosos até sua casa, sem viagem à lua ou um abraço, apenas um olhar. Perdeu a geografia da casa e sem perceber passou a sua casa e outras mais, até que fosse pêgo pelo automóvel que virava a esquina.

sábado, 24 de abril de 2010

esvoaçar

e naquela tentativa de fundir-se a tudo aquilo que era vida e que o vento por isso levara, ou numa busca por perder-se no mesmo sopro de vento, ele levantava sua mão, fazendo-a transpassar o limite do vidro já caído. O veículo movia-se como que levando-o a qualquer lugar nenhum; ele estava: transitório. 

Suas mãos num esforço inútil de alcançar qualquer coisa que ele julgava palpavél, mesmo não o sendo lhe soava poético, mas aos demais parecia patécico como cheiro de gás, mas ele não via pois estava alerta para qualquer coisa que não deveria ser programada.

Sem música ou barulho, todos olhavam ele calado a estender a mão através da janela em movimeto num ensaio suicida. A quem desejava matar ? Mulher, compromissos, sonhos, ansiedades demasiado perigosas ? Só o silêncio de seus olhos esteticamente figurados no balançar das mãos poderia dizer, e era uma linguagem difícil de ser ler. Começava pelo começo, seguia em frente até o fim. e no fim, perdia-se como caído em qualquer buraco de vida. Por instantes perdeu a noção dos verbos até achar-se infantil refletido no retrovisor do veículo. Viu a mão a transpassar o limite, tudo que era segurança. Temeu e recolheu-a. Fechou os olhos e vestiu seus sonhos rigorosamente comprados e todos voltaram a seus papéis até chegaram à casa silenciosa e pálida como nada.

sábado, 3 de abril de 2010

Ofício n° 4

Sei que há em mim
algo que fala
por sussuros
pequenos silêncios
e é meu  dever
destino-dado
traduzi-los para  que
ao momento-fato,
tecidos e cosidos
ecoem além do pensamento

sábado, 20 de março de 2010

S.

; sim. Começamos. No ato? Não, na entrelinha. Pois que tudo que te falo não é nada mais que acaso, acaso dos mais verdadeiros. Eu te amo com quem encontra amoras silvestres nos quintal. Não me surpreendo a cada dia quando mais acordado ou mais adormecido, é o teu pensamento que me assalta e rouba o sono, e restitui o sonho. És tu, a chama quente e morna que me acalanta, me suspira o éter; é um pedaço de tudo quanto és que me aviva. Ah! não, não me despertes. Quero tomar desse instante egoísta e puramente meu-nosso para estar, unicamente estar, unicamente ao teu lado. Não me despertes.

sábado, 13 de março de 2010

o disco da íris

Talvez meus olhos não brilhem como antes, certamente não brilham mais, você me reclama. Sinto que perdi a habilidade das cores. Sinto que perdi muitos vôos pensando estar alto. Mas eu me encontro.

Poema de Tarde Inteira

Talvez eu não saiba narrar sonhos
certamente não sei os meus
até porque os sonhos não são da classe de coisas que eu goste de narrar aos ventos
nem fazê-los de ecos dos meus pensamentos
os sonhos são meus, palavras que gostaria que estivessem reclusos
todavia, acredito que compartilhando, eu teja aliviando e não os tenha dito
portanto, cerra teus olhos; os meus estão fechados.
Silencia qualquer palavra
junta tua mão à minha, assim como fazemos à vida
e deixa que fiquemos juntos, sozinhos, em suspense do  mundo
então entenderá o abismo profundo que cerca e preenche
um abismo absoluto de cores várias. Vê e não te sumas.
Necessito-te.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Necessidade

Bibliotecas não me bastam; quero uma bibliodisséia.

coração

É a noite, por fim, podes tocá-la.
Também a mão, a pequena e febril
música da mão, aí está a iluminá-la.
Agora vê-se melhor o caminho.

Eugénio de Andrade, AQUI

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Balada do lado sem luz

 

Hoje por acaso fui encontrado por essa música do Gilberto Gil interpretada pela MAria Bethânia na época dos Doces Bárbaros e fui tomado. Amo a Bethânia, mas nessa é poca em especial ela é fantástica! Gosto muito daquele olho com manchas pretas e profundas como que um meteoro que cai sobre os cabarés, aquele cabelo sem preguiça, todo espontâneo. As mãos firmes e seguras como quem ama. Gosto de toda essa explosão mútua de sentimento e liberdade, ainda que cativeira.
 

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Casto

As vezes eu olho pra mim e choro. Choro como quem vê um cadáver e chora. Mas chora não pela morte, mas pelo pedaço que falta. Eu choro pela ausência, pela falta e pelo oco. Eu choro pelo que não há mais, e pelo que não volta.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Linha de pensamento

amor
humor
rancor
feridas
dor


uma linha simples
amarrada por pequenas falhas
pequenos gestos
pedaços de egos e fatos
tudo tudo muito gasto.

como uma faca velha
cega e desfalcada
rasga a pele e fria
adentra a alma
desfazendo-a parte por parte

amar já não basta mais pra qualquer pessoa civilizada que deseje sobreviver.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Quinteto IX

A sua sombra eu não quero ver
a sua voz eu não pretendo ouvir
que é pra acabar com esse prazer sádico
e tolo de gostar de alguém
mesmo que seja você

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Quando eu era criança, vez ou outra como passeio tinhamos a praia aos domingos. Lembro que ao chegar em casa, já vermelho e ainda cheio de areia, sentia as ondas do mar dançando em meu corpo. Sinto saudade dessas coisas, e às vezes parece que o mar me tomou o corpo embora e ainda não devolveu. Se o corpo não foi, e ainda está em mim, sinto falta de algo. Talvez fosse um pedaço de minha alma, que com certeza está lá, não sei por quais motivos ou processos, mas certamente está lá. Os cientistas dizem que é lá que está 80% da vida na Terra, talvez mais ou menos disso é o que a água, e o mar em princípio nos ensina. Metade de mim e é água, e outra metade é terra. E talvez eu seja lama porque Touro (terra e água) e Coruja(ar e água)  mistiram-se. Antes de eu ser o que sou, eu fui algo que já não me pertence.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

( )

Há um silêncio que escondido no íntimo de todo olhar; lá residem todas as palavras.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Talião

Não sei com quantos paus se faz uma canoa, mas sei que os que tenho não são suficientes. Não basta doçura; aridez também é necessário. É uma construção que se faz em agridoce. Não sei se poderá ser lido, ao menos não da forma certa. A maioria lerá dos olhos pra fora, mas a verdade é que se deve ler dos olhos para dentro.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Poema de Elisa

Ah, minha pequena
que o correr dos teus olhos
são como cais e lua
na maré fria do porto
que é meu pensamento

em eterno contentamento
vejo-te sempre silente
enternecida por sonhos,
em teu colo amontoam-se de dores
que não me deixas conter

não te permitas fugir ao meu afago
dá tuas mãos, deixa-me um abraço
não recuse meu olhar atento
deita tranquila sobre meu peito.
Pois guardo teu sonho com olhar atento

O Silêncio e o Novelo

Não te enganes
com aparências vis, amada minha

o amor de um homem
vai além de tuas palavras
emerge da nascente da alma
e corre em fonte seca
no devir de qualquer provento.

é o amor que flui
da corrente fria da cor
da genuína grota do toque
e rente à pele despida
escorrega sensível à fala.

traduz-se em alimento
dança sutil ao brilho dos olhos
fumaça indigente ao fundir dos corpos

é no sincero toque da pálpebra
que se revela o real sentimento
a dizer-se em momento.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Do lugar de cada coisa

E deus criou o homem
à sua imagem e semelhança

E o homem criou o plástico
abuso e repugnância.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O verso

Um dia
há de vir o verso
que me traduz.

que me desvele os pedaços
me dispa de toda carne
e me devolva toda alma.

Há de vir um verso
que me diga e transcreva
que devolva minha real natureza.

Há de vir um verso
sombrio e calmo como  o vento
que se aposse do meu pensamento.

e nesse dia, nesse verso
mesmo longe, ausente
estarei presente.
Coisa muito feia essa que a gente tem de mostrar um pequeno deifeito nosso a quem o tem em maio evidência só pra nos sentirmos melhores. Coisa de seres humanos, esse estado podre de elevação.
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