sábado, 27 de outubro de 2018

A tecnologia do medo e o mapa do afeto

Há momentos na vida em que o desejo de sentir-se seguro é equacionado pelo medo. É o medo que nos constrange a usar certas roupas ou símbolos com receio do assédio, da violência, da possibilidade de sermos transformados em vítima. É essa sensação de medo como projeto de segurança que nos fez atribuir a cores, elementos e a lugares uma certa  aura ou atitude de rejeição ou evitação. Como democratas, nesse caminho nem sempre muito refletido ou deliberado evitamos o vermelho para não sermos vistos como alvo de alguma ação violenta, anticomunista; pelo mesmo dispositivo também passamos a ler aqueles com a bandeira nacional ou camisas de futebol com suspeição.

Isso tudo me lembra as coisas que li na minha formação como leitor de ficção e como antropólogo sobre medo, violência e colonialismo. Lembro dos comentários do Franz Fanon,  da Teresa Caldeira, do Michel Taussig, do Paulo Freire, do Mia Couto, da Noémia de Sousa e do José Craveirinha, a poesia do Ferreira Gullar, os contos do Osman Lins entre tantos outros que me inspiram como pessoa que teme, mas que antes de tudo, sonha. 

Retomo aqui uns versos rápidos:
Quem pôs o mistério e a dor
em cada palavra tua?
E a humilde resignação
na tua triste canção?
E o poço da melancolia
no fundo do teu olhar?
Foi a vida? o desespero? o medo?
Diz-me aqui, em segredo,
irmão negro.
 Porque a tua canção é sofrimento
e a tua voz, sentimento
e magia.
(...)
que a tua triste canção dorida
não é só tua, irmão de voz de veludo
e olhos de luar…
Veio, de manso murmurar
que a tua canção é minha.
(Canção Fraterna, Noémia de Sousa)

Escurecem as horas
nomeadas pela fome
extinguiu-se o sangue da terra
esvaiu-se o leite
num coágulo de saudade
Restam troncos
sustendo gemidos
mães oblíquas sonhando migalhas
mendigando crenças
para salvar os filhos já quase terrestres
(Protesto contra a lentidão das fontes, Mia Couto)


         claro claro
        mais que claro
                         raro
o relâmpago clareia os continentes do passado
(Ferreira Gullar, poema sujo)


Há algum tempo eu também dizia entre amigos que para alguns (aqueles que chamamos de "adversários") nosso medo seria nossa fraqueza, e que deveríamos reverter isso e cotejar que os nossos medos são a unidade de reconhecimento sobre quão muitas e muitos somos , e que estamos juntas. Mas reversão não é inversão, e isso não pode ser uma recusa de que o medo é também um instrumento de colonização das nossa imaginação, uma barragem que tenta conter o poder do sonho e da transformação.

Que a nossa busca por segurança seja pautada pelo cuidado, pela construção de um ambiente afetivo de convívio e amor entre aqueles e aquelas que nos fazem e nos querem bem, não pelo enfrentamento da ameaça da presença de um outro.

Se nosso projeto de democracia é um projeto de substituição das tecnologias do medo pela sofisticação do amor, do respeito e da paz então é preciso criar também novas formas de ocupar o medo e transformá-lo de fato no nosso idioma para a força. Nossa força é a diferença, a possibilidade de diálogo e divergência na construção de mundos possíveis, na alimentação do desejo e da potência de transformação. E nesse momento o caminho para isso, para um mundo do possível, é a democracia, é a eleição daqueles que representam um projeto pautado pelo engrandescimento humano e pela sensibilização.

domingo, 12 de março de 2017

[carta ao tempo, senhor dos esquecimentos e ausências]

São Paulo, outono quase verão, 2017

Ev,

Essa coisa de road movie é um troço complicado. Mexe com a gente em algum lugar que nem faz sentido porque carece de geografia inteligível. Como se, sendo a vida uma estrada, fôssemos nós um negativo a registrar e se fazer presente na câmera e nos sentidos. Quiçá, a vida seja isso mesmo, uma estrada. Já nem sei mais quantos dias cheguei aqui, mas a cada dia, a despeito do que aprendi na escola, as forma de contar se misturam e se confundem. O tempo passa agora não pelas horas - essas aliás seguem bem agéis - ela passa pela consciência das distâncias, das diferenças. É o trem que não soa mais de manhã, o barulho dos pássaros que agora se converte em construção, o calor que não aquece, mas transpassa, queima, rasga as narinas e cada fôlego se converte em um sutil movimento de resistência.

Por algum tempo achei que esquecer fosse uma dádiva. Ainda acho, mas ainda há essa espaço que rouba a carne e transforma todo espaço de vida em esquecimento. Esquecer é deixar de ser, ausentar-se. E eu, aqui deslocado, me vejo cada dia mais escrevendo através do meu corpo um caderno de ausências.

Me vi agora mesmo assistindo central do Brasil, aquela cena sobre a qual nunca falamos. Nela Dora escreve, finalmente, a carta para Josué. Em algum momento entre a estrada-vida e o ônibus-pessoa ela diz: "eu digo isso porque tenho medo que um dia que você também me esqueça. (...) tenho saudade de tudo". 


t.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

O amor tem aquele cheiro de perfume barato que minha mãe usava depois de pentear meu cabelo nas manhãs em que podia me levar à escola. Residia algo como de segredo naquela marca sem marca que fica na bochecha de quem acorda cedo pra dar o banho e cozinhar, mesmo a despeito do cansaço e da jornada semanal de exploração onde seu corpo era mastigado. Lembro, não sem fazer cair uma ou duas lágrimas me escorrerem pelo rosto, da sua aparente realização ao ver nossos cabelos penteados, as bochechas gordas e a pele morna da noite dormina e do próprio sonho abdicado em favor de nos ver acordar dez minutos mais tardes. O amor tem esses aromas e lembranças de uma manhã qualquer de terça-feira.

Em meu corpo, esses cheiros e cores sem marcas lembram a altivez de uma casa turmalina a todo instante desmontando os limites da palavra saudade.

domingo, 2 de outubro de 2016

diário

[inscrevo em cada lembrança-experiência um cheiro de domingo, de tarde de sábado, ou de café matinal. deixo assim espraiado pelo corpo dos dias os vestígios de tantos doces e salgados, amargos e salobros que são juntos algo como um esboço de vida. talvez a própria vida.  notivago e incerto tomo nota de cada órgão, sussurro todo o toque. no contorno e nos desencontros de cada balanço cabisbaixo ou recusa altiva é meu pulso o diário ponteiro de um relógio feito não de números, mas de silêncios e segredos. meu corpo-palavra é página sempre em desmonte. quisera e ser falante e leitor desses alfabetos que tanto transcrevo e vivo e tão pouco entendo. queria ter o ouvido ou a astúcia de falar a língua dos gatos, dos becos, das noites, a língua da gota que persistente cai e desenha rios oceanos mares esgotos e lágrimas sem fim. quisera eu ter uma língua mais apta a escrever nessas páginas amontoadas uma palavra-casa e nela morar, viver, ali onde pudesse junto a uma palavra-raiz me instalar e romper. mas se acredito na palavra-vida, talvez ainda volte, talvez ainda venha a ser tão grande como um ramo de alecrim a marcar um livro]

(02.10.2016)

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

cartografia

Muito cuidado
meu corpo é mapa
machucado e ferido,
tecido em linho fino
e de trança já rasgada.
nele as bolhas do passado
reúnem tanto do riso
quanto da lágrima.


meu corpo é fluxo
caudaloso
tenra torrente
encontro e escarpa.
Muito cuidado
ele sangra e canta
é trilha repleta de visagem.
Muito cuidado.

(Brasília, 30.09.2016)
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