quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

cabelo

Já tarde desfiz-me do brilho das unhas que escondiam meus dedos, deitei as roupas ao chão e ali desnudo, frente ao espelho, planejei com desatenção meu corte desenhando sobre o tecido do copo uma geografia que supunha linhas, meridianos, escolhas, decisões. Meus instrumentos, uma máquina de cortar cabelos, um pente, uma escova e toda a precariedade de uma pequenez humana. Lavei os cabelos em lágrima e riso do ano corrido e untei tudo em graça e sorte. Fiz de cada fio um bilhete em relicário dos dias. Ao secar, revia correr, entre o cristal e o reflexo de um eu em desmonte, os pedaços, cheiros e cores dos dias. E ao vê-los, fio a fio, me despedia e retirava aquilo tudo que superava o brilho e a agonia necessários à vida. Os fios caíam e os dias, como promessa de um novo ano se anunciavam à minha frente, como sorriso de criança. Os dedos ali expostos e os fios da memória com condutores de lembranças me advertiam entre pretos, brancos e cinzas a necessidade de atenção e cuidado ao tempo. As madeixas ali dispersas entre o ralo e o chão, as tramas, agora aparadas, mas há pouco dilaceradas denunciavam a minha suspeita: nada escapa.

sábado, 26 de dezembro de 2015

há uma
lasca
(e tantas lágrimas)
de poesia
em cada tijolo
daquela
construção.

há tanto
e tudo
ou nada
- agora-
nesta 
canção.

queira,
faz favor,
esvaziar 
o poema
desmontar a canção
só me interessa
o verso-tijolo
da construção.

(26.12.2015)
não cobrarei abraços
as palavras semeadas
ou beijos esquecidos:

futuro fatigado
levo apenas o que é meu
- e mais nada!

à promessa declinada
(lágrima a lágrima)
a dádiva será cobrada

(26.12.2015)

um dia serei árvore

"sou uma árvore"
repito desde menino
 - os pés descalços sobre a terra,
saúdo a passos leves
o firme e o firmamento.

remorso já pequeno
tal desejo inconfesso
de ser árvore.

para ser, renuncio à caminhada
- privilégio e desatino.
me invento movimento,
fixo raiz em mim e de mim
exploro e penetro
o ventre escuro e frio da terra
com meus dedos em silêncio.

troco todos os olhos
desmonto a íris e me semeio

tronco
pele

arremedo sentimental
cicatriz e marca de amantes.

E de todo o resto, tudo que neste corpo
ora sobra, ora excede, ora não presta
que se faça flor, que se faça folha
milhões de singelas folhas
chorando orvalho
caindo outonos

em novo corpo
eu -emente

a dádiva renovada
de conter em si o mundo
                 e fazer-se grande

aberto em abraço
desabraço
desabrocho

um dia serei árvore
e juntos floresta

(24,12.2015)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

tua presença

tua presença é dia de sol
ainda que
          contigo
meu corpo
       desfaça
             em chuva
e eu deseje apenas a neblina
oculta em desejo e segredo.
ali envolvo o teu em mim
enlaço teu corpo ao meu
como quando na tua imensidão
em toque compassado, ritmado
                me chegas sorrindo
                os olhos esgotados
                     (de tanto riso)
                os pés apressados
              e me contornando, desde trás, o beijo se demora

E quando me tocas
vacilo ao vento, estremeço
derreto pedaço a pedaço inteiro
chuva e suor a jorrar
semeando graça sobre a terra cultivada

tua presença é dia de sol
norte para meus passos
                 é o calor
candeia sentimental
em amontoado de ausências
e falhas

(14.12.2015)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

de costas

eu vou escrever um poema em Tuas costas
desenhar Teu corpo
Teu dorso
meu desejo

desfazer aos poucos
o frêmito dos pelos

vou escrever um poema no Teu corpo
e recitá-lo por inteiro

do cabelo aos pés
fazer rimar teus joelhos

em Tua boca entregar
verso a verso
no Teu hálito recobrar
retraçar do meu reflexo

(09.12,2015)

intento

"porque só escrevemos sobre aquilo
que se encravou em nossa memória"
João Anzanello Carrascoza


invento algarismos
algoritmos
     dispersos
na tentativa vã
de contabilizar
algum beijo roubado

desenho  transcrevo
palavras
     soltas
qualquer linguagem
inexata
mas nenhuma descreve
tua língua rara

pequeno ou distante
inocência ou engodo
quem sabe?

como dizer teu olho castanho
teu lábio corado
teu corpo, o meu

como dizer
meu ser
inteiro

despedaçado?

(09.12.2015)

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

coroa revelada

a balança sustenta
em síntese reunida
lágrima torpor e canto
doçura cor e remanso

amálgama declinada
tem em si mesma fundida
graça sob a urze cultivada.

refletida paira coroa 
e o gesto soberano
silencioso e desmedido
já nada falta fala ou habita

no corpo o frêmito dormente
aproxima braço e soberania
afastando amor e cortesia

desatado abraço
olho e não te faço
corpo lado a lado

que seja assim
distante e calado
ecoando sangrar amargo
do meu dizer revelado


(24.08.2015 - 04.09.2015)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Não  sei se  acordei com preguiça
Não sei se acordei com saudades
Acordei e já parece tarde

Do tarde restaram três certezas
A certeza do teu toque calmo
A delicadeza do teu riso-alarde
A largura da tua falta

Não sei se acordei com preguiça
Não sei se acordei com saudade
Sei que nunca vai ser tarde
Tarde demais para teu abraço

(25.08.2015)

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Madrugadas

I
Fustigado em silêncio
entrego corpo e vida
ao colo do leão reticente

Palavra resvalada
desabotoo verso a verso
cada sílaba rara

II
Toco e adentro fio a fio
o doce cheiro da madrugada
o sopro do vento curto e frio

Ao som cristal da chuva
deita à minha calma
a pele embriagada

III
Em suas mãos
vejo fluido cheiro graça
movimento desfeito em vão

Atento meu olhar sereno
sobre teu corpo assim tocado
e soberano plano sobre tua alma

IV
Em tua pele me demoro
e suave dedilho
tropeço e roço

A converter ritmo em som
teu corpo no meu mesmo
como um só

(29.07.2015)
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