domingo, 12 de março de 2017

[carta ao tempo, senhor dos esquecimentos e ausências]

São Paulo, outono quase verão, 2017

Ev,

Essa coisa de road movie é um troço complicado. Mexe com a gente em algum lugar que nem faz sentido porque carece de geografia inteligível. Como se, sendo a vida uma estrada, fôssemos nós um negativo a registrar e se fazer presente na câmera e nos sentidos. Quiçá, a vida seja isso mesmo, uma estrada. Já nem sei mais quantos dias cheguei aqui, mas a cada dia, a despeito do que aprendi na escola, as forma de contar se misturam e se confundem. O tempo passa agora não pelas horas - essas aliás seguem bem agéis - ela passa pela consciência das distâncias, das diferenças. É o trem que não soa mais de manhã, o barulho dos pássaros que agora se converte em construção, o calor que não aquece, mas transpassa, queima, rasga as narinas e cada fôlego se converte em um sutil movimento de resistência.

Por algum tempo achei que esquecer fosse uma dádiva. Ainda acho, mas ainda há essa espaço que rouba a carne e transforma todo espaço de vida em esquecimento. Esquecer é deixar de ser, ausentar-se. E eu, aqui deslocado, me vejo cada dia mais escrevendo através do meu corpo um caderno de ausências.

Me vi agora mesmo assistindo central do Brasil, aquela cena sobre a qual nunca falamos. Nela Dora escreve, finalmente, a carta para Josué. Em algum momento entre a estrada-vida e o ônibus-pessoa ela diz: "eu digo isso porque tenho medo que um dia que você também me esqueça. (...) tenho saudade de tudo". 


t.

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