Arthur comprara sua liberdade em uma promoção na última black friday. Seguindo o princípio da canção de Arnaldo Antunes de que “só é seu aquilo que você dá”, resolveu ele também dá-la, como um gesto concreto da sua generosidade de ser humano preocupado com o futuro do planeta e com o bem estar dos poucos amigos próximos. A felicidade vinha engarrafada na forma de um smartphone, como eventualmente ocorre por aí. Em tempos de crise e consumo, a felicidade, amor e liberdade cumprem essa sina metamorfa de se converterem em automóveis, celulares, convites e, por que não, livros. A doação da liberdade fora o último suspiro de uma sinfonia já há muito tocada a som e fúria, carne e sisal, lâmina e bálsamo. Nada se via que não o movimento suntuoso que já pouco dizia. Era qual um pássaro pequeno preso entre as cadeiras de uma biblioteca: se esforça, seu canto incomoda, ao ser encontra poucos segundos separam o canto de medo do enxotamento.
Ensinara à sua amada toda a dádiva dos aplicativos: aplicativo para fazer fotos, aplicativos para compartilhar fotos, para aumentar o seio, para botar dois, três, quatro seios; aplicativos para tirar as manchas, para botar pintas à calha dos lábios, para ouvir músicas, para enviar músicas; toda sorte de aplicativos expunham a felicidade de não ser só, um mal sem dúvida ainda pior que o envelhecimento. A liberdade cedida era um compromisso de combate à solidão. Luísa odiava estar só em casa, não havia como supunha Tom Jobim “raio de sol nos seus cabelos”. Raio algum adentrava o quarto onde dormiam que não fosse aquele do lazer – também no aplicativo do banco.
Já domingo Luísa cansara de sua liberdade entregue numa promoção de sexta. Sentou-se à beira da cama, montou sua playlist com as canções de Nina Simone entrepostas às de Tom Jobim: I put a spell on you, olha que coisa mais linda, mais cheia de graça. No seu smartphone não precisava mais de lanterna, ainda que gostasse de caminhar no escuro e sentir a flacidez dos seios, o pender da gordura nas laterais. A noite, ou pelo menos o escuro lhe conferia, a sóbria decisão de tão somente sentir, ignorando a arrogância fria que impõem a luz e a visão. Sentada à beira da cama, ignorando a lanterna de seu presente, esvaziava-se entre o roubo e a dádiva, desmontava-se da roupa e do sonho, apenas dormia.
Arthur já ignorava os atrasos, não fazia mal, Luisa estaria acompanhada, servindo-se de sua liberdade. Ao tomar a condução recebera um sms ao celular. “lê o bilhete. Luísa”. Não entende. Nada diferente até então. Ao chegar, a porta cerrada era a primeira camada de escuridão a ser transporta, acende a luz e chama “Luísa?”. Nada. Ao quarto vê a amada deitada. Sorri. Dorme tranquila. Na geladeira o bilhete: te amo ainda que não queiras, essa liberdade não me serve. Me machuca, me corrói.
Luísa dormia.
[joão pessoa, noite de chuva indecisa, 02-12-2014]
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