Já tarde desfiz-me do brilho das unhas que escondiam meus dedos, deitei as roupas ao chão e ali desnudo, frente ao espelho, planejei com desatenção meu corte desenhando sobre o tecido do copo uma geografia que supunha linhas, meridianos, escolhas, decisões. Meus instrumentos, uma máquina de cortar cabelos, um pente, uma escova e toda a precariedade de uma pequenez humana. Lavei os cabelos em lágrima e riso do ano corrido e untei tudo em graça e sorte. Fiz de cada fio um bilhete em relicário dos dias. Ao secar, revia correr, entre o cristal e o reflexo de um eu em desmonte, os pedaços, cheiros e cores dos dias. E ao vê-los, fio a fio, me despedia e retirava aquilo tudo que superava o brilho e a agonia necessários à vida. Os fios caíam e os dias, como promessa de um novo ano se anunciavam à minha frente, como sorriso de criança. Os dedos ali expostos e os fios da memória com condutores de lembranças me advertiam entre pretos, brancos e cinzas a necessidade de atenção e cuidado ao tempo. As madeixas ali dispersas entre o ralo e o chão, as tramas, agora aparadas, mas há pouco dilaceradas denunciavam a minha suspeita: nada escapa.
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